ARTIGO – A SECA, A BOATE E A MÍDIA

A mídia brasileira (em especial aquela abrigada no eixo Rio/São Paulo) insiste em tratar os problemas do país de forma desigual, dando cobertura aos fatos, conforme lhe é conveniente. Por exemplo, é o que se ver nestes últimos dias, quando o Brasil se depara com duas situações extremamente dramáticas.

Num extremo do país, no estado do Rio Grande do Sul, uma tragédia sem tamanho, que subtraiu a vida de centenas de jovens, entre 16 e 25 anos. É incalculável o número de famílias consternadas, diante do trágico acontecimento, que resultou na morte prematura de seus entes queridos, numa das fases mais privilegiadas da existência. O fato logo ganhou dimensão nacional, sensibilizando pessoas nos rincões mais remotos do país. É que a dor é universal e não respeita fronteiras.

Noutro extremo do país, na região nordestina, outra tragédia, igualmente dolorosa: a tragédia resultante da estiagem prolongada (a pior dos últimos 40 anos), que, há anos seguidos, vem se abatendo sobre o nordeste brasileiro, ocasionando dores e sofrimentos a 12 milhões de nordestinos, também eles brasileiros e cumpridores dos seus deveres, enquanto cidadãos e cidadãs.

Mas a mídia, principalmente a televisiva, não vê a coisa dessa maneira. Ela parece ter olhos apenas para uma face da moeda, ignorando, ou fingindo ignorar a existência da outra. Isso está patente nos dois casos acima mencionados.

Basta ver com quanta insistência vem sendo noticiada a tragédia da boate Kiss. Telejornais inteiros chegam a ser dedicados ao assunto. Interrompem-se pautas previamente definidas, enquanto jornalistas e âncoras de renome são enviados ao teatro dos acontecimentos. Alguns dias já transcorreram desde o triste episódio, e este ainda é um dos principais temas dos noticiários. Especialistas são entrevistados a todo instante e uma série de medidas com vistas à prevenção de incêndios em espaços públicos já começa a ser efetivada, graças, inclusive, à pressão dos meios de comunicação.

Já a seca do nordeste não tem recebido a mesma atenção. O que se ver são pequenas e tímidas reportagens, veiculadas uma vez ou outra, e sem a repercussão que o fato demanda. Transmitidas quase sempre por canais de alcance local e regional, tais reportagens, normalmente, se atém a áreas específicas do nordeste, quando deveriam ocupar-se da problemática, em toda a sua extensão. As abordagens, geralmente, são superficiais e desprovidas de informações mais consistentes no que diz respeito aos transtornos provocados pela estiagem prolongada. Esquecem, entre outras coisas, de apontar as reais causas da tragédia, como se esta fosse de responsabilidade apenas do elemento climático, sem qualquer implicação no campo das decisões políticas.

Fica, portanto, nosso questionamento em relação a essa atitude assimétrica da mídia no tratamento de determinadas questões. Tal postura terá que ser revista com a máxima urgência, ou então boa parte dos veículos midiáticos que aí estão (muitos deles já desgastados), continuarão a perder credibilidade junto ao público brasileiro.

José Gonçalves do Nascimento

Membro da Academia de Letras e Artes de Senhor do Bonfim – Bahia