Primeira produção original da Netflix no Brasil estreia sexta

O ator baiano João Miguel é um dos personagens principais da trama que mostra o mundo dividido entre devastação e progresso

Imagine um mundo dividido entre um miserável continente e uma ilha tecnológica onde a vida é perfeita. A única oportunidade de passar de um lugar (Continente) para o outro (Mar Alto) é enfrentar, aos 20 anos, um processo seletivo competitivo, injusto e desumano, onde apenas 3% dos candidatos são aprovados. “Você é criador do seu próprio mérito”, declara o chefe do processo desprovido de políticas inclusivas, diante de centenas de candidatos, entre eles um cadeirante.

A cena fictícia faz parte da série 3%, primeira produção brasileira da Netflix, assinada pela Boutique Filmes que estreia sexta, com os oito episódios disponibilizados de uma só vez. Quem encabeça o elenco é o ator baiano João Miguel, que interpreta o poderoso Ezequiel, chefe do processo de seleção, e a atriz carioca Bianca Comparato, que dá vida a Michele, líder do grupo de candidatos dispostos a fazer de tudo por uma vida melhor. Tudo mesmo: trapaças, roubos e falsidade ideológica.

Na série 3%, um grupo de jovens de 20 anos disputa um processo seletivo que pode tirá-lo da miséria
(Foto: Pedro Saad/Netflix)

Qualquer semelhança com a realidade brasileira não é mera coincidência, já que a série 3% traz para o centro do debate a meritocracia, a desigualdade e outros temas que revelam muito sobre a sociedade brasileira. “O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo e, de alguma forma, na série essa desigualdade está totalmente cristalizada dentro do sistema. Uma desigualdade oficial, proposta e até ‘querida’”, destaca o criador e roteirista de 3%, Pedro Aguilera, 27 anos.

Dirigida pelo uruguaio César Charlone, que também assina a direção de fotografia de filmes como Cidade de Deus (2002), O Jardineiro Fiel (2005) e Ensaio Sobre a Cegueira (2008), 3% mergulha no universo da distopia. Ou seja, aquele lugar onde se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação.

“O Brasil, de certa maneira, é uma distopia, a gente não precisa nem inventar. Foi muito sensível do Pedro Aguilera trazer isso para o Brasil. O conceito faz muito sentido e a entrada do César Charlone dá mais brasilidade, mais latinidade, de um futuro mais presente”, ressalta a atriz Bianca Comparato, 31.

Lado de lá
Entrevistas, provas de lógica, esforço físico e outros testes fazem parte do tal processo que dá aos jovens de 20 anos a chance de mudar de lado. E quando se fala em uma sociedade dividida entre o “lado de lá” e o “lado de cá” vem à mente trilogias como Jogos Vorazes (2012) e Divergente (2014), mas 3% nasceu muito antes disso, em 2009, quando Pedro Aguilera ainda cursava a Faculdade de Cinema, em São Paulo.

Ao lado de um grupo de amigos e influenciado por clássicos da literatura como 1984, escrito por George Orwell em 1949, e Admirável Mundo Novo (1931), de Aldous Huxley, ele começou a criar a websérie, inicialmente  veiculada no YouTube, através de um edital do Ministério da Cultura.

Para sorte de Pedro e o grupo de amigos Dani Libardi, Daina Giannecchini, Ivan Nakamura e Jotagá Crema, o episódio piloto foi visto pelo atual vice-presidente das séries originais internacionais da Netflix, Erik Barmack, que gostou do resultado da websérie e fez o convite.

Claro que os dados recolhidos dos hábitos de uso dos assinantes contaram na decisão. “Nós sabemos que o público brasileiro gosta de ficção científica. Isso nos ajuda, mas faríamos a série 3% de qualquer forma, independente dessa informação”, afirmou Barmack durante conferência voltada para o mercado audiovisual, que aconteceu no Rio de Janeiro, em março.

Ambiguidade
Cada personagem da série 3% traz um lado bom e outro que que coloca em cheque a ética e os limites humanos. Ninguém é 100% bom quando se trata da única chance de fugir de uma vida miserável onde esses jovens candidatos vivem muitas vezes sem água nem comida.

O público vai se deparar com personagens durões e totalitários que deixam escapar uma humanidade, em determinados momentos, e outros que parecem doces e humanos, mas que de repente se veem dispostos a matar pela chance de uma vida melhor. Isso vale para os jovens que se submetem ao processo, mas também para os mantenedores desse sistema desumano.

“Todos os personagens têm contradições, cada um com sua história”, pondera o ator João Miguel, 46, sobre seu personagem Ezequiel. Chefe totalitário que defende cegamente o processo competitivo, ele tem momentos de “fraqueza” diante de sua mulher, interpretada pela atriz Mel Fronckowiak.

João Miguel interpreta Ezequiel, um homem completamente a serviço de um sistema opressor e desumano
(Foto: Pedro Saad/Netflix)

“Acho que ele se depara com a questão do poder e do amor, onde se explica que esse cara está totalmente empenhado em levar esse processo a qualquer custo. Ele é o chefe, mas também um boneco daquele sistema”, destaca João Miguel, que recentemente voltou aos palcos com a peça Bispo, na qual revive o sergipano Arthur Bispo do Rosário (1909-1989).

Bispo e Ezequiel são bem diferentes, mas têm em comum o fato de provocarem discussões sobre o sistema. “No caso do Bispo, é um personagem catalogado pela sociedade como louco, mas que eu trago aspectos de lucidez. No caso do Ezequiel é o contrário, já que é um personagem bem aceito pela sociedade num lugar de poder completamente louco e esquizofrênico”, compara João Miguel.

O ator conta que o personagem o interessou muito por causa da “possibilidade de denunciar, de fazer uma crônica através do trabalho a figuras que estão aí”. “Esse personagem é muito contundente hoje. Tendo tantos Ezequiéis por aí, não precisei construir tanto o personagem. Vamos botar ele na roda e ver como faz dentro desse processo”, provoca.

Real
Bianca Comparato destaca que a série 3% tem dois caminhos: pode servir como um alerta e seria apenas um exagero – “o que seria incrível para a humanidade” –, ou também pode ser uma exposição da segregação que já existe hoje e não só no Brasil.

Cadeirante da trama, o ator carioca Michel Gomes, 27, foi confundido com um menino de rua durante as gravações de 3% e destaca que a série está longe de ser apenas uma trama sobre o futuro. “A gente não está tão longe dessa realidade. É sempre bom debater esse tema, porque isso acontece, é real, ninguém está inventando”, denuncia.

“Acho incrível que a série está sendo lançada num momento em que essa discussão está tão pulsante. Isso não tem como planejar, essa conjuntura”, aponta Bianca. “Quem realmente merece ser aprovado? Por quê? Nossa sociedade é assim, você é julgado o tempo inteiro e a série critica isso”, completa.

*A repórter viajou a convite da Netflix

Fonte: correio24horas

Na série 3%, um grupo de jovens de 20 anos disputa um processo seletivo que pode tirá-lo da miséria
(Foto: Pedro Saad/Netflix)

Qualquer semelhança com a realidade brasileira não é mera coincidência, já que a série 3% traz para o centro do debate a meritocracia, a desigualdade e outros temas que revelam muito sobre a sociedade brasileira. “O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo e, de alguma forma, na série essa desigualdade está totalmente cristalizada dentro do sistema. Uma desigualdade oficial, proposta e até ‘querida’”, destaca o criador e roteirista de 3%, Pedro Aguilera, 27 anos.

Dirigida pelo uruguaio César Charlone, que também assina a direção de fotografia de filmes como Cidade de Deus (2002), O Jardineiro Fiel (2005) e Ensaio Sobre a Cegueira (2008), 3% mergulha no universo da distopia. Ou seja, aquele lugar onde se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação.

“O Brasil, de certa maneira, é uma distopia, a gente não precisa nem inventar. Foi muito sensível do Pedro Aguilera trazer isso para o Brasil. O conceito faz muito sentido e a entrada do César Charlone dá mais brasilidade, mais latinidade, de um futuro mais presente”, ressalta a atriz Bianca Comparato, 31.

Lado de lá
Entrevistas, provas de lógica, esforço físico e outros testes fazem parte do tal processo que dá aos jovens de 20 anos a chance de mudar de lado. E quando se fala em uma sociedade dividida entre o “lado de lá” e o “lado de cá” vem à mente trilogias como Jogos Vorazes (2012) e Divergente (2014), mas 3% nasceu muito antes disso, em 2009, quando Pedro Aguilera ainda cursava a Faculdade de Cinema, em São Paulo.

Ao lado de um grupo de amigos e influenciado por clássicos da literatura como 1984, escrito por George Orwell em 1949, e Admirável Mundo Novo (1931), de Aldous Huxley, ele começou a criar a websérie, inicialmente  veiculada no YouTube, através de um edital do Ministério da Cultura.

Para sorte de Pedro e o grupo de amigos Dani Libardi, Daina Giannecchini, Ivan Nakamura e Jotagá Crema, o episódio piloto foi visto pelo atual vice-presidente das séries originais internacionais da Netflix, Erik Barmack, que gostou do resultado da websérie e fez o convite.

Claro que os dados recolhidos dos hábitos de uso dos assinantes contaram na decisão. “Nós sabemos que o público brasileiro gosta de ficção científica. Isso nos ajuda, mas faríamos a série 3% de qualquer forma, independente dessa informação”, afirmou Barmack durante conferência voltada para o mercado audiovisual, que aconteceu no Rio de Janeiro, em março.

Ambiguidade
Cada personagem da série 3% traz um lado bom e outro que que coloca em cheque a ética e os limites humanos. Ninguém é 100% bom quando se trata da única chance de fugir de uma vida miserável onde esses jovens candidatos vivem muitas vezes sem água nem comida.

O público vai se deparar com personagens durões e totalitários que deixam escapar uma humanidade, em determinados momentos, e outros que parecem doces e humanos, mas que de repente se veem dispostos a matar pela chance de uma vida melhor. Isso vale para os jovens que se submetem ao processo, mas também para os mantenedores desse sistema desumano.

“Todos os personagens têm contradições, cada um com sua história”, pondera o ator João Miguel, 46, sobre seu personagem Ezequiel. Chefe totalitário que defende cegamente o processo competitivo, ele tem momentos de “fraqueza” diante de sua mulher, interpretada pela atriz Mel Fronckowiak.

João Miguel interpreta Ezequiel, um homem completamente a serviço de um sistema opressor e desumano
(Foto: Pedro Saad/Netflix)

“Acho que ele se depara com a questão do poder e do amor, onde se explica que esse cara está totalmente empenhado em levar esse processo a qualquer custo. Ele é o chefe, mas também um boneco daquele sistema”, destaca João Miguel, que recentemente voltou aos palcos com a peça Bispo, na qual revive o sergipano Arthur Bispo do Rosário (1909-1989).

Bispo e Ezequiel são bem diferentes, mas têm em comum o fato de provocarem discussões sobre o sistema. “No caso do Bispo, é um personagem catalogado pela sociedade como louco, mas que eu trago aspectos de lucidez. No caso do Ezequiel é o contrário, já que é um personagem bem aceito pela sociedade num lugar de poder completamente louco e esquizofrênico”, compara João Miguel.

O ator conta que o personagem o interessou muito por causa da “possibilidade de denunciar, de fazer uma crônica através do trabalho a figuras que estão aí”. “Esse personagem é muito contundente hoje. Tendo tantos Ezequiéis por aí, não precisei construir tanto o personagem. Vamos botar ele na roda e ver como faz dentro desse processo”, provoca.

Real
Bianca Comparato destaca que a série 3% tem dois caminhos: pode servir como um alerta e seria apenas um exagero – “o que seria incrível para a humanidade” –, ou também pode ser uma exposição da segregação que já existe hoje e não só no Brasil.

Cadeirante da trama, o ator carioca Michel Gomes, 27, foi confundido com um menino de rua durante as gravações de 3% e destaca que a série está longe de ser apenas uma trama sobre o futuro. “A gente não está tão longe dessa realidade. É sempre bom debater esse tema, porque isso acontece, é real, ninguém está inventando”, denuncia.

“Acho incrível que a série está sendo lançada num momento em que essa discussão está tão pulsante. Isso não tem como planejar, essa conjuntura”, aponta Bianca. “Quem realmente merece ser aprovado? Por quê? Nossa sociedade é assim, você é julgado o tempo inteiro e a série critica isso”, completa.

*A repórter viajou a convite da Netflix