Neuropsicóloga aponta como a quarentena está afetando os relacionamentos e a saúde mental e emocional das famílias 


Em um período difícil de isolamento social como medida de prevenção à proliferação do novo coronavírus, muita coisa se alterou no quesito convivência familiar, devido a permanência maior de todos em casa e das dificuldades decorrentes dos desdobramentos da pandemia do covid-19. Contudo, profissionais da saúde e especialistas do assunto têm apontado que as consequências deste isolamento pode levar a casos de adoecimento no âmbito psicológico e emocional, refletindo diretamente na dinâmica das famílias e na vida cotidiana.

A neuropsicóloga e psicanalista Dra. Leninha Wagner aponta preocupação em relação às mudanças promovidas pela quarentena, a situação de confinamento e a ameaça biológica do covid-19: “Todos nós, profissionais da saúde mental, estamos preocupados com os desdobramentos  do panorama mundial, que nos obrigou ao Isolamento Social ou mesmo Confinamento. Gerando tantas incertezas, que criam medos e ansiedade. Todo este cenário negativo, irá desencadear  de forma irreversível a  problemas na  psiquê humana. Estamos todos com atenção focada para a saúde do corpo; e com total razão. Porém já começam a aparecer um aumento substancial de adoecimento psíquico. O ser humano é por essência, paradoxal, isto é, somos um “indivíduo de relação”. Como indivíduos, somos inteiros; e indivisíveis, mas precisamos nos relacionar. Como bem disse Freud, é preciso amar para não adoecer”.

Laços afetivos e familiares podem ser abalados

A especialista ressalta que uma situação como esta pode abalar as relações familiares, embora elas sejam fortes: “Se observarmos, precisamos de dois para fazer um. Um carrega dois. Apesar do corte do cordão umbilical, os laços afetivos e emocionais nos ligam para toda a jornada da vida. Mas ainda assim; e apesar de tudo, todo excesso esconde uma falta. E no excesso do convívio familiar, nos faltarão as relações sociais, profissionais, que nos dão prazer e nos acalmam a alma. Porém, os relacionamentos, que em psicanálise chamamos “afetos”- O quanto eu te afeto,  o quanto por você sou afetado. Há sempre uma carga emocional ambivalente, isto é, amor e ódio duelando para trazer o equilíbrio à relação, seja ela familiar, afetiva ou amorosa.”

“Ninguém pode me magoar, salvo aquele à quem eu amo”.

Segundo a Dra. Leninha, a face oculta do amor pode ser a também raiva. Logo, lidar com essa emoção tão poderosa quanto negativa, em tempos de confinamento e excesso de convívio familiar pode fazer emergir conteúdos latentes que estavam mascarados entre as distrações do convívio social: “Quando somos tolhidos, dessas distrações e confrontados a médio ou longo prazo com aquilo que contemos, mas escondemos de nós mesmos, tudo isso pode se manifestar em ondas de calorosas discussões, com projeções de aspectos que são da própria pessoa. Mas ela usa da negação sobre si, para enxergar no outro, todos os pontos negativos da relação. Chegará o momento em que a “cara metade”, já não é tão cara e deixará de ser metade.”

A neuropsicóloga também ressalta a imprevisibilidade da situação em que estamos: “Fomos de forma inesperada, obrigados a nos isolar socialmente, e convivermos mais proximamente com o sistema familiar. Esposa e marido, filhos e pais, irmãos avós e etc. Algumas relações estarão diante de um caso clínico de extremos. Ou haverá uma ruptura irreversível, ou o fortalecimento da união. Conflitos e confrontos irão vir à tona, mágoas e  cobranças irão emergir. Todos os conteúdos que estavam escondidos sob as camadas das ocupações da rotina diária: Trabalho, academia, shoppings, drinques, bate papos, escola das crianças e etc. Estão contidos, naquilo que não pode mais conter tanto assim: o lar.”

 

Como manter a unidade familiar e emocional durante o confinamento

Para a Dra. Leninha, o segredo consiste em  juntar as peças daquilo que formava uma unidade viva e dinâmica, mas funcional: “Somente com a vontade dessa pequena comunidade a que chamamos “família”, será possível retornar a homeostase. O casal precisa buscar a sintonia perdida, para que em par, ambos sejam atendidos em suas necessidades, alcançando assim o bem estar individual e do casal. É necessário abrir o canal de comunicação – diálogo. Rever o contrato antigo a que chamamos casamento, inserindo novas cláusulas com o firme propósito de restabelecer a vida conjugal. Tudo voltará ao normal, pois tudo na vida passa e esse momento também passará. Mas é necessário equilíbrio e saúde emocional, para ultrapassar esse momento. Certamente, há a possibilidade de sairmos todos, mais maduros e fortalecidos com todo aprendizado que o momento pode nos oferecer.”

Número de divórcios aumenta durante quarentena, mas psicanalista alerta: ”Existem casais que, na adversidade, se fortalecem”

Fabiano de Abreu diz que a quarentena é um momento propício para uma reflexão sobre a realidade

A quarentena mudou a rotina de muita gente em Portugal e no mundo! A atual conjuntura, de isolamento social — e com o home office instalado em muitas famílias, obrigou muitos casais a conviverem novamente, a compartilharem espaço de uma forma como já não faziam há muito tempo.

E por que isso mudou tanto? Porque a sociedade moderna nos levou a ter “dois casamentos”, um com o parceiro e outro com o trabalho. E, normalmente, este último tem, de quase todos, mais empenho e atenção.

OPORTUNIDADE DE REFLETIR

Segundo o filósofo e psicanalistaFabiano de Abreu, a quarentena pode ser um momento ideal de pausa e avaliação.

“O nosso cotidiano atribulado nos torna, muitas vezes, em seres preguiçosos em relação a nós mesmos e a quem partilhamos a vida. Há uma preguiça instalada nas relações. As pessoas não param para avaliar, para refletir no porquê de estar com aquela pessoa, se ela ainda nos supre ou simplesmente cedemos ao comodismo”, comenta o psicanalista.

Contudo, Fabiano de Abreu alerta que não podemos nos entregar à conjuntura, não podemos confundir sentimento com estado emocional.

O fato de estarmos isolados, de aumentar o nosso nível de ansiedade, de se avistarem dificuldades financeiras pode acionar em nós emoções não desejadas. Essas devem ser filtradas e ponderadas com calma.

“Este tipo de avaliação deve ser muito cautelosa. Temos que medir, compreender se realmente quem está ao nosso lado já não tem o mesmo impacto na nossa vida. Se realmente o sentimento findou e não tínhamos dado conta. As pessoas muitas vezes ficam juntas por conforto e segurança, mas, em tempos de crise, podem acontecer rupturas definitivas. Por vezes, o medo da solidão pode sobressair”, esclarece.

O ISOLAMENTO PODE APROXIMAR

Por outro lado, segundo a linha do filósofo, em alguns casos, ocorre a situação oposta. Mesmo tendo sentido uma desconexão por toda uma rotina, agora, neste momento de paragem, algumas relações podem se fortalecer. Segundo Fabiano, “existem casais que na adversidade se fortalecem, que não cedem aos impulsos e usam o momento para pensar em dupla. Seguem a velha máxima de que uma cabeça pensa melhor que duas. Usam a quarentena para delinear estratégias, buscando um ponto de equilíbrio. Juntos irão recuperar e fazer frente ao que estiver por vir”.

Segundo o filósofo, a quarentena pode ajudar para que o casamento se transforme em algo mais concreto, que saia do abstrato.

“Há quem viva um relacionamento abstrato, pois está com a mente totalmente ocupada em seus afazeres. O concreto é o que define uma linha racional dentro de uma realidade vivida”, explica.

PERÍODO DE DECISÃO

Estes momentos servem para ter a percepção real. Ou realmente o relacionamento está acabado, ou segue mais forte. Os momentos de paragem obrigam-nos a olhar para situações que protelávamos há mais tempo do que o desejável.

Finalizando o tema, o filósofo alerta para outro fator. Segundo o estudioso, o mundo caminha para a solidão. As famílias são cada vez mais pequenas, menos filhos. Há uma individualização instalada. Estamos nós, enquanto humanos preparados para seguir sozinhos?

“Momentos críticos fazem-nos refletir sobre as nossas escolhas. Preferimos passar por esta crise apenas por nossa conta ou, se de fato, a base familiar é uma ajuda“, reflete.